sexta-feira, 2 de março de 2007

O amor que a repressão não conseguiu dominar

em Diário de Notícias, 24 Outubro de 2006
I parte


"Não me arrependo, nem nunca me arrependi de nada. Voltaria a fazer tudo de novo. Tudo!" Mercedes Elizalde tem 73 anos e um olhar que diz muito sobre a sua garra. Amanhã completam-se 50 anos desde que casou, contra tudo e contra todos, com José Oriol Domènec. Por ele, fugiu da mansão paterna aos 23 anos, com uma trouxa feita com a colcha da sua cama. Por ele, deixou para trás o conforto e o luxo, atravessou um rio a nado, esteve presa em Caxias. Por culpa de um amor proibido, foi fechada pela própria família num convento e a seguir num reformatório para mulheres sem rumo. Hoje, os dois catalães seguram na mão um do outro e sabem que valeu a pena. E Oriol, emocionado, repete vezes e vezes sem conta: "É uma grande mulher. Uma brava mulher!"

Conheceram-se em 1952. Ele era um jovem médico, ela era uma "dama de la Cruz Roja" (voluntária da Cruz Vermelha). Um dia, coincidiram no mesmo hospital. "Eu tinha uma daquelas luzes na cabeça, como um mineiro, para ver os pacientes. Voltei-me de repente e a luz focou aquela rapariga. Pensei: 'Que linda mulher!' E, mais tarde, quando a voltei a encontrar, meti conversa."

Os dois namorados viram-se umas dez vezes, não mais. Quando percebeu de quem era filha, José Oriol soube que teriam problemas. Salvador Elizalde era um multimilionário, apoiante de Franco, que certamente não veria com bons olhos a relação da filha com um jovem revolucionário, que pendurava bandeiras de Barcelona e cartazes com palavras de ordem em diversos monumentos, e a quem tinha sido feito um conselho de guerra.

Fuga para Portugal

Obrigado a exilar-se na Argentina, Oriol continuou a corresponder-se com Mercedes. Conheciam-se mal, mas cada carta ajudava um a saber mais sobre o outro, e a paixão, em vez de esmorecer com a distância, crescia desmesuradamente. Da Argentina, Oriol seguiu para a Alemanha para fazer a especialização em Otorrinolaringologia. E, durante meses, os dois enamorados prepararam a fuga de Mercedes de casa, bem como a partida de ambos para a Argentina.

Encontrar-se-iam em Vigo. Ele vinha de barco da Alemanha, faria escala naquele porto, ela embarcaria, escondida, e partiriam rumo a uma vida nova na América do Sul. Mas as coisas não correram como planeado. Mercedes não apareceu. "Ainda hoje não sei bem porque foi que não veio. Durante 50 anos, nunca falámos desta aventura. Nunca. Ela sofreu demasiado e eu, com medo de a magoar, nunca lhe perguntei nada. Mas creio que estaria hesitante. Fugir era um passo de gigante para uma menina criada em berço de ouro."

Percebendo que Mercedes não vinha, José Oriol saiu do barco e acabou em terra, a vê-lo partir. Quando lhe ligou, Mercedes disse: "Dá-me 48 horas e estarei em Vigo."

"Vinha com uma trouxa enorme às costas. Nem se viam as pernas! Depois é que soube que tinha posto o máximo que tinha conseguido em cima da colcha da cama e, em seguida, amarrado tudo com um nó, como uma ciganita." Como o passaporte de Mercedes tinha sido confiscado pelo pai, não podiam apa- nhar um barco para a Argentina. Foi então que decidiram seguir para Portugal. Oriol já tinha estado junto ao rio Minho e sabia que o caudal permitia fazer a travessia praticamente a pé, com água pela cintura. Só que quando chegaram a água tinha subido e "o rio já não era um rio, era um mar!" José Oriol olhou para Mercedes e pensou desistir. Mas ela, com a força que sempre a caracterizou, não teve dúvidas: "É da maneira que nos refrescamos mais." Falamos do mês de Outubro de 1956.

Apanhados em Coimbra

Atravessaram o rio feito mar, ele primeiro, ela depois. Pararam em Valença do Minho, no Porto e em Coimbra, última paragem antes de serem apanhados. Nessa noite, estavam a dormir quando foram despertos pelas pancadas secas na porta: "Abram. Polícia."

Em Lisboa, foram interrogados por um capitão da polícia com fama de ser um duro. Mas o homem parecia demasiado incrédulo por ver de que modo os dois apaixonados eram perseguidos pelo influente pai dela. A sua dureza converteu-se em compaixão. Mas Mercedes era menor de idade (em Espanha a maioridade só se atingia, então, aos 25 anos) e o polícia era obrigado a cumprir a lei.

Na esquadra, apareceu também um alto representante do clero de Barcelona, enviado por Salvador Elizalde para meter juízo na cabeça da jovem. Falou-lhe de moral, de honra, da ameaça pendente do inferno. Mas, apesar de ser profundamente católica, Mercedes não parecia disposta a ceder. O capitão, incomodado com a pressão que os dois sofriam, chegou a discutir com o padre. Oriol não esquece as palavras do polícia: "Em Espanha ainda se vive na Idade Média?" Ao que o padre ripostou: "A moral e os bons costumes são intemporais!" Mercedes foi então levada para a prisão de Caxias.

Quando se viu a sós com José Oriol, o capitão da polícia deu-lhe a morada do escritório dos "melhores advogados de Lisboa". E perguntou: "Tens dinheiro?" Oriol tinha. Nessa manhã foi recebido por quatro advogados que lhe indicaram o que se seguiria: "Amanhã, às onze, vá à Igreja da Pena. O senhor e Mercedes vão casar." Como era possível que casassem se Mercedes estava presa? Que não se preocupasse. Só havia um detalhe que não podia esquecer. Antes das assinaturas tinham ambos de escrever: "FF". E tudo correria bem. O final desta história, porém, estava ainda longe de ser feliz como se querem os finais das histórias de amor.

Um comentário:

Anônimo disse...

Carlos, ando aqui feita doida à procura de um contacto teu, se leres isto por favor diz-me qq coisa é urgente joana@claricehadalittlelamb.net (joana linda)