domingo, 11 de março de 2007

Em 50 anos, nunca vi a Mercedes chorar

em Diário de Notícias, 25 Outubro de 2006
II Parte


Oriol Domènec segura com as duas mãos um caderninho envelhecido, como quem pega numa preciosidade. No seu interior, há folhas e folhas com letras desenhadas. "M" e "O". De Mercedes e Oriol. "E" e "D". De Elizalde e Domènec. Página ante página ante página. Desenhar letras não era proibido no reformatório onde Mercedes viveu durante quase dois anos, já casada com Oriol, mas ainda menor (tinha 23 anos e a maioridade em Espanha só se atingia aos 25 anos).

O pai dela, Salvador Elizalde, depois de tudo fazer para separar a filha do jovem revolucionário catalão, tentou ainda um último recurso. Trancada primeiro num convento e depois numa instituição para prostitutas e mulheres sem rumo, Mercedes ocupava o tempo a desenhar as iniciais do seu nome, lado a lado com as iniciais do nome do seu grande amor. Era a proximidade que lhe restava.

Estamos no consultório de Oriol Domènec, em Barcelona. Mais precisamente na Avenida Diagonal, uma das principais - e mais ricas - artérias da cidade. A porta do prédio revela a imponência que o interior do consultório confirma. O jovem médico odiado pela família de Mercedes tornou- -se um otorrinolaringologista de prestígio e de renome. Uma verdadeira bofetada de luva branca em quem julgou que casava com Mercedes motivado pela fortuna do pai. Nunca precisaram da herança que ela nunca recebeu.

Oriol Domènec tem hoje 83 anos e continua a fazer intervenções cirúrgicas diariamente. Sobe e desce escadas em passo rápido, caminha com pressa, fala com ânimo e sem nunca perder o fôlego. Tem guardadas todas as cartas que ela lhe escreveu, desde que se conheceram, em 1952. E lembra-se de todos os detalhes da aventura de ambos com uma nitidez invulgar.

Convento e reformatório

Depois de sair de Lisboa, Mercedes não sabia o que o pai lhe reservara. Supunha, talvez, que regressaria a casa, à severidade paterna, aos olhares decepcionados da mãe e dos oito irmãos. Mas não. Mercedes nunca mais voltou a pisar o palácio da família, no coração de Barcelona. Chegada de Portugal, foi fechada num convento, numa cela isolada. O Patronato de Protecção à Mulher queria avaliar os estragos: se estaria grávida, se mostrava indícios de arrependimento. Numa carta escrita a Oriol (mas só enviada mais tarde, porque no convento a correspondência era interdita) dizia: "Estou num convento pior que uma prisão. Não posso ler, escrever, não falo com ninguém."

Uma semana depois, Mercedes foi levada para o reformatório onde havia de ficar durante dois anos. Ali, dormia numa camarata com outras 40 mulheres, algumas prostitutas, outras órfãs, outras como ela, meninas de boas famílias a precisar de um "correctivo". Aprendeu os lavores necessários a qualquer mulher que se prezasse, viveu despojada da vida luxuosa em que sempre vivera, e escreveu largas, larguíssimas dezenas de cartas a Oriol Domènec. Os pais nunca a visitaram. E durante meses tentaram anular o casamento realizado em Lisboa. Sem sucesso.

O reencontro na Argentina

Pouco antes de fazer 25 anos, Mercedes teve ordem para sair do reformatório. No dia 30 de Janeiro de 1958, apanhou um avião para Madrid e, em seguida, outro para Buenos Aires. Dois anos depois do enlace em Lisboa, Mercedes e Oriol reencontravam-se na Argentina. "Nessa altura eu vivia mal, tinha uma barraca como as dos índios. Mas para ela estava sempre tudo bem. Sempre teve uma garra e um optimismo incríveis. Sempre foi brava. Uma brava mulher!"

O casal viveu então dez anos em Ushuaia, na Patagónia. Primeiro num casebre pobre, depois numa herdade de vários hectares com cavalos, vacas e ovelhas. Oriol ganhava fama e dinheiro. Era procurado por gentes pobres e endinheiradas, a sua reputação de bom médico galgava fronteiras. Mercedes trabalhou sempre com ele, ajudava nas cirurgias, tornou-se a enfermeira perfeita. Muitas vezes, enquanto ele andava de terra em terra a visitar doentes, Mercedes ficava sozinha numa casa completamente isolada. Os índios acos- tumaram-se a chamar-lhe "pistoleira" pela pressa com que pegava na arma para atemorizar qualquer estranho que aparecesse.

Um ano depois do reencontro, nasceu a primeira filha, com sete meses de gestação. Mónica não resistiu à prematuridade. O segundo filho, Ariel, também não sobreviveu mais que um ou dois meses, vítima da síndrome da morte súbita. Mercedes, profundamente católica, até podia ter acreditado em castigo divino. Mas não. "Era demasiado inteligente para isso. E optimista, sempre. Creio que nunca a vi chorar. Não. Em 50 anos , nunca vi a Mercedes chorar."

Por fim, nasceu Alex. E depois Ivo, Eva e Ulia. Hoje, o mais velho dos quatro filhos tem 46 anos, Ivo tem 44, Eva 35 e Ulia 33. Mercedes e Oriol têm cinco netos. Em Barcelona conhecemos Eva e os seus três filhos. Alex vive perto, Ulia está na Alemanha e Ivo ficou na Patagónia.

Dez anos depois do reencontro, dez anos depois do começo de vida na Patagónia, Mercedes e Oriol mudaram-se para Barcelona, onde vivem até hoje, numa casa do século XII, rodeada por um denso bosque. E até a casa parece saída de um filme, com um tesouro encontrado (e roubado) pelos homens que reconstruíram o soalho, e com túneis escavados por debaixo da casa (para poder fugir em caso de assalto).

Mercedes e Oriol casaram no dia 25 de Outubro de 1956, em Lisboa. Hoje faz 50 anos que o amor deles venceu todas as barreiras. Pela maneira como ainda se olham fica-se com a certeza de que valeu a pena. Mercedes não sabe mas Oriol vai oferecer-lhe um colar.

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